Um dos maiores problemas da biologia pré-formacionista e adultocêntrica é o desprezo óbvio pela história. Foca-se nos genes do ovo e então se pula direto para se mirar dois adultos competindo por sexo e comida. Bom, esse hiato que nos esconde a história do organismo, um ponto cego na biologia neo-Darwinista, é justamente um dos pontos de interesse de Teorias realmente epigenéticas, como a Deriva Natural.
Curiosamente, ao ser pré-formacionista e adultocêntrica, esta biologia é também finalista. Por esta razão, mesmo no momento em que o desenvolvimento retorna a ser uma disciplina relevante para a Biologia, vemos também surgir o Bad e o Ugly (termos colocados pelo Vargas em outro post), enquanto a história continua ausente do foco no mainstream. E nesta developmental fashion week, continua-se a mirar um embrião como um adulto incompleto, como um simples trânsito para o estágio final – finalismo velado!
Lembro-me que quando o Mpodozis esteve aqui em Florianópolis ele comentou que deveríamos entender um fígado embrionário no contexto da dinâmica do embrião, e não pensando no que ele deverá estar fazendo enquanto um fígado no animal adulto. Por este motivo, me agradou muito encontrar esse artigo que fala de uma “Fisiologia cardíaca desenvolvimental” – termo criado pelo autor, que explicita sua preocupação em compreender o que faz o coração no embrião, no contexto do desenvolvimento, não como um órgão se preparando para bombear sangue no futuro! Isso é muito relevante, pois quase todas as descrições do desenvolvimento cardíaco têm esse viés de explicar a formação de um órgão para bombear sangue. É explicação baseada nas expectativas do observador, que remete ao futuro, e que desreipeita uma lógica de construção histórica.
Agora falando de fato sobre o assunto, vejam vocês, que curioso: nos períodos mais iniciais do desenvolvimento embrionário, o embrião realiza suas trocas gasosas através de uma simples difusão; até que a partir de um certo tamanho isso não é mais possível e então se observa que há ali agora uma circulação sanguínea e um coração batendo! Então isso basta para se dizer que o coração surgiu para manter a oxigenação. Mas vejam neste gráfico. Ao contrário do que se esperava desde uma perspectiva funcionalista (painel superior da figura), o coração começa a bater ANTES do embrião atingir esse tamanho que impossibilita a difusão (figura do painel inferior).
Quer dizer, nos períodos iniciais está lá o animalzinho fazendo difusão e batendo seu coração... Tira-se fora o coração aí e o que se passa? O embrião continua vivendo e oxigenando seus tecidos. O coração surge num contexto independente desta função de nutrição de oxigênio. Não surge para realizar esta função, que atribuímos ao coração no adulto. O que faz o coração aí? Para entender isso, precisamos entender seu contexto de relações e sua história, não sua finalidade (sua função), por isso a explicação funcionalista não nos serve.
Então encontrei este elegante manuscrito de Waddington (1937): “THE DEPENDENCE OF HEAD CURVATURE ON THE DEVELOPMENT OF THE HEART IN THE CHICK EMBRYO”, em que ele remove o coração do embrião para observar as conseqüências disso no resto desenvolvimento. Os principais achados dele eu reproduzo aqui:
"1. The heart was removed from chick embryos of seven to twelve somites, and the embryos cultivated in vitro. The operation abolished the normal twisting of the anterior part of the embryo on to its left side and the general bending of the brain region into an arc. These two processes therefore seem to be dependent on the normal development of the heart.
2. The embryos showed a bending of the forebrain relative to the midbrain, which is therefore independent of the development of the heart.
3. The embryonic blood system, including the aortic arches, developed normally in many cases, but the blood vessels became enormously dilated.
4. The lateral evaginations of the foregut and the visceral arch mesenchyme underwent the first stages of differentiation in atypical positions, seemingly independently of each other or of any other structures
."
Enfim, compartilho com vocês este raro momento em que se mira a construção de um órgão sem se preocupar com a sua finalidade, sem vê-lo como um trânsito para sua futura função.
Abraços,
Gustavo
Referencias
Burggren, W., Crossley, D. A. Comparative cardiovascular development: improving the conceptual framework. Comparative Biochemistry and Physiology - Part A: Molecular & Integrative Physiology. Volume 132, Issue 4, August 2002, Pages 661-674.
Waddington C_1937.The dependence of head curvature on the development of the heart in the chick embryo. J Exp Biol
14:229]231